terça-feira, 23 de março de 2010

Instituições ligadas à arte e ao desenvolvimento de pessoas com deficiência apresentam na prática uma realidade na qual é possível rimar cultura com

* Matéria enviada por Marila Duarte. Confira texto e fotos na página de origem, Portal Nacional de Tecnologia Assistiva.

Para Todos
Edição fevereiro/2010

Provando ser possível o que muitos acham inviável, a Pinacoteca do Estado de São Paulo mantém, desde o ano passado, um espaço voltado prioritariamente a visitantes com limitações visuais de diferentes graus: a Galeria Tátil de Esculturas Brasileiras. No segundo andar do museu, encontram-se 12 obras originais, de diversos períodos e estilos, e que podem ser tocadas pelos deficientes visuais – com ou sem o auxílio da audiodescrição, o visitante é quem escolhe. “O es
paço garante a visitação autônoma de cegos no museu”, explica Mila Chiovatto, coordenadora do Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca. “A priori, poderíamos pensar que um museu de artes visuais seria um espaço restritivo para o público com déficit visual. Mas, ao contrário, a gente propôs uma outra coisa, uma exploração tátil de esculturas que pudesse garantir que esse espaço fosse também destinado a esse público.”

Mesmo antes da
formalização desse espaço, a Pinacoteca já possuía, desde 2003, um programa de acessibilidade de parte de seu acervo, por meio do Programa Educativo para Públicos Especiais (Pepe), do qual faz parte a galeria. “Trata-se da implantação de ações que potencializam não só fisicamente o acesso, mas também cognitivamente e afetivamente”, declara a coordenadora. O Pepe tem como base a proposta de que qualquer deficiência – seja ela de ordem motora, cognitiva, visual, auditiva ou de qualquer outro tipo – pode ser “equilibrada por meio da exploração dos múltiplos sentidos que a pessoa dispõe”, define Mila. “Utilizamos muito a ideia de recursos multissensoriais, que possam garantir uma exploração mais profunda do mundo das artes.”

E quais seria
m esses recursos? A assistente de coordenação do programa Margarete de Oliveira explica que eles vão de visitas monitoradas até o investimento em reproduções de quadros em relevo para serem tateadas. “Para o programa como um todo, nós selecionamos 30 pinturas e 30 esculturas para os quais desenvolvemos um material de apoio que permite aos deficientes reconhecê-las”, informa. “Nós trabalhamos com reproduções dessas pinturas em material de resina acrílica e em maquetes táteis, que fazem com que o deficiente visual, por exemplo, possa ter acesso a essas obras.”

De acordo com Margarete, para as demais deficiências, também são usadas maquetes articuladas de obras, além de recursos que envolvem o olfato e a audição. Como é o caso do quadro Caipira Picando Fumo (1893), de Almeida Júnior (abaixo), que ganhou uma reprodução tridimensional, com direito a um pedaço de fumo de rolo, e dos já citados áudios que descrevem as obras e comentam seus períodos e artistas. “Todo esse material foi elaborado pensando na aproximação desse público com a obra de arte por outras vias de percepção”, diz Margarete.


Empoderamento
De 2003 a
2008, a Pinacoteca já recebeu, por meio do Pepe, 5.178 visitantes com diferentes deficiências. Mila Chiovatto comemora esse número creditando-o a uma mudança de mentalidade. “Eu acho que temos evoluído muito e a passos muito largos”, avalia. “De cinco anos para cá esse pensamento tem se aprofundado bastante.”

Para a coo
rdenadora do Núcleo de Ação Educativa, têm pesado nessa mudança a “formação e construção de organismos governamentais que projetam o direito das pessoas com deficiência” e a articulação por parte dessa parcela da sociedade. “O que a gente vê é que, numa sociedade como a nossa, o público com deficiência tem cada vez mais se organizado para garantir e manter seus direitos”, avalia. “É um grupo que vem crescendo muito nas suas conquistas.”

A fonoaudióloga e mestre em distúrbios da comunicação Renata Macedo Soares não é tão otimista. “A mentalidade está mudando mais no discurso do que na prática”, analisa a também fundadora e presidente da Associação Morungaba – da qual faz parte o núcleo de mesmo nome que trabalha com o desenvolvimento de pessoas com deficiência por meio de diversos projetos. “Na palavra, no papel, nas leis – a legislação brasileira no que diz respeito à deficiência é muito melhor do que a de muitos países –, a coisa está bem. Mas na ação o ritmo está mais lento.” Por outro lado, Renata também concorda com a importância da mobilização por parte das pessoas com deficiência. “Eu acredito muito que a mudança está no empoderamento dessas pessoas”, afirma. “Não é a gente que vai fazer por eles. Esse trabalho nosso é de empoderar, de pôr [as pessoas] nas situações, ver o que é possível e ir lá fazer.”


Programa legal
Ao observar mais de perto a dinâmica tanto das instituições culturais quanto das organizações que trabalham com o desenvolvimento das pessoas com deficiência, o que se percebe é que se trata sempre de um empenho conjunto. Ou seja, se, por um lado, a Pinacoteca configura-se num exemplo de equipamento cultural acessível, por outro, faz-se necessário também o esforço de propiciar que a pessoa com deficiên-?cia possa chegar até esse local – e mais, possa perceber que esses espaços públicos também pertencem a ela como a qualquer outro indivíduo. “Quanto mais as pessoas com deficiência ocuparem a cidade, mais elas mesmas vão reverberar isso e provocar essa mudança nos outros”, continua Renata.

Para isso, o trabalho envolve diversas etapas. “Nas nossas saídas a gente trabalha primeiro nossa região, onde cada um mora ou mesmo as imediações aqui da instituição”, explica o psicólogo, psicanalista e acompanhante terapêutico Primo Renan Nogueira de Araújo, coordenador do projeto Use a Sua Cidade, do Núcleo Morungaba – que consiste em organizar grupos de pessoas com necessidades especiais para passeios por São Paulo, incluindo programas culturais. “Eles [os participantes dos grupos] vão ‘marcando’ os lugares, vão se apropriando deles.” Para o psicólogo, essa é uma maneira de despertar a consciência da sociedade para o fato de que os indivíduos com deficiência “são pessoas que têm essa ou aquela característica, como todo mundo é de tal ou tal jeito, mas que circulam, que usam [a cidade e seus serviços], que conversam, que têm um nome, um jeito, um gosto”.

Aliás, o gosto é um dos principais critérios de escolha dos programas do Use a Sua Cidade, que, embora não restrinja seu atendimento, tem hoje grupos formados prioritariamente por casos de insuficiência intelectual, baixa visão e problemas de ordem afetiva. “Aqui, as pessoas são estimuladas primeiro a se olharem e pensarem sobre o que gostam de fazer”, retoma Renata. “Aí a gente vai atrás desse gosto, ver o que eles querem fazer dentro do assunto, do tema que interessa a eles.”

Na área da cultura, os museus ganham destaque. “Os mais atípicos”, comenta Primo. “Museu da Voz, Museu da Pessoa, Museu dos Óculos, Museu do Relógio. Museus bem diferentes.” O que, segundo o especialista, não dispensa “os grandes”, como ele chama. “Masp [Museu de Arte de São Paulo], Museu do Futebol, MAM [Museu de Arte Moderna de São Paulo], Bienal [Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera], Paço das Artes, [Instituto] Tomie Ohtake e galerias de arte.”

Segundo o psicólogo, no que diz respeito à acessibilidade dos locais visitados, a história se bifurca: se, por um lado, os prédios têm, segundo afirma, cada vez mais se preparado para receber todos os tipos de público; por outro, a mentalidade, em alguns casos, ainda não acompanhou essa evolução. “A acessibilidade física está boa”, comenta Primo. “É o acesso no sentido do contato, da recepção, que ainda precisa ser mais trabalhado.” Renata faz uma ressalva nesse sentido: “O acesso está bom para esse grupo [com o qual trabalham atualmente], mas a gente não tem nenhum cadeirante, por exemplo. O dia em que tivermos, acho que a gente vai sentir melhor isso”. Na opinião de Primo, a situação já foi pior. “Faz 12 anos que eu faço esse tipo de trabalho”, conta. “Já deu para ver que nesse tempo a coisa evoluiu bastante. Falta muito, mas há 12 anos era muito complicado, não tinha nem rampa de acesso ou elevador.”


Política cultural
O quadro geral revela avanços e entraves. Em 2008, por exemplo, a Fundação Dorina Nowill para Cegos conseguiu realizar, em parceira com o MAM, o I Encontro Regional de Acessibilidade em Museus – o primeiro do Brasil, conforme explica a coordenadora do Centro de Memória da instituição, Viviane Sarraf. “Tivemos oportunidade de chamar as instituições parceiras, que já começaram a desenvolver os projetos de acessibilidade, com base em nossas orientações e avaliações”, diz. “Foram cerca de 200 participantes.”

Entre outras atuações, a fundação presta consultoria em acessibilidade para teatros, cinemas e museus – foi ela que, em 2005, organizou a primeira exposição acessível a deficientes visuais, expondo documentos de seu acervo. “Foi um evento pequeno, simples e modesto, mas acessível, e que passou a ser um exemplo”, informa Viviane.

A coordenadora faz parte dos que acreditam que, nos últimos anos, o país passou por um significativo avanço na questão. “De 2006 até agora houve um boom”, afirma. “Antes, havia, no máximo, quatro projetos de acessibilidade [em espaços culturais, em todo o país]; atualmente quantificamos 20 projetos. Consideramos esse aumento substancial.” Para Viviane, o momento é de tomada de consciência por parte dos gestores culturais de que a pessoa com deficiência tem plenas condições de se tornar um consumidor frequente de bens culturais. “Hoje há mais vontade de começar os projetos”, afirma. “Falta, porém, mais incentivos públicos específicos que fomentem e apoiem financeiramente as ações.”

A coordenadora aponta que ainda faz falta uma política cultural “definida e bem delimitada”, com parâmetros e formas de capacitação e repasse de recursos para a realização das ações. Assim como profissionais qualificados para trabalhar na área. “A mão de obra que presta esse tipo de serviço de acessibilidade cultural é outra coisa que precisa ser mais desenvolvida”, avalia. “A mão de obra de cultura já é pouca, e para a acessibilidade, por ser uma questão nova, há menos ainda. Mas as pessoas estão aprendendo, errando e acertando.”

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Direito de ir e vir
Mais do que tornar acessível o bem cultural à pessoa com deficiência, é necessário que haja autonomia para escolher horários e lugares

Segundo a coordenadora do Centro de Memória da Fundação Dorina Nowill para Cegos, Viviane Sarraf, mais um recurso tem entrado no cenário da acessibilidade em iniciativas culturais: a audiodescrição em cinemas e teatros. A coordenadora informa que sessões e espetáculos audiodescritos já podem ser usufruídos desde 2009. "O que temos de cinema e teatro, no Brasil, nesse sentido, ainda são ofertas restritas, como em eventos especiais e festivais", informa Viviane. Entre os exemplos estão a mostra Cinema Nacional Legendado e Audiodescrito, realizada em 2009, no Rio de Janeiro, e o Festival Assim Vivemos, em sua quarta edição, no ano passado, e que contou com audiodescrição para fones de ouvido, feita ao vivo por dois atores em todas as sessões. "Na oferta regular de cinema comercial, nós não temos isso, diferentemente da Espanha, por exemplo", informa Viviane. Já no teatro, a oferta, ainda que tímida, é mais sistemática. "O Teatro Vivo reserva algumas sessões com audiodescrição", informa a coordenadora.

Ainda entre os entraves para que o cenário se amplie, Viviane aponta um recorrente equívoco na imagem desse público. "Há em mente que a pessoa com deficiência está institucionalizada", afirma, referindo-se à ideia de que o indivíduo com deficiência esteja necessariamente ligado a uma instituição. "Isso não corresponde à realidade. Há pessoas com deficiência nas mais diversas situações: casadas, estudando, trabalhando etc." Nesse sentido, Viviane destaca a importância de reconhecer a autonomia da pessoa com deficiência. "Ela precisa ter o seu direito de ir e vir garantido, para que possa aproveitar as ofertas quando e como ela quiser: com um amigo, com um familiar ou sozinha."


Fonte:
Portal Nacional de Tecnologia Assistiva


Sugerido por:
Marilda Duarte
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