sexta-feira, 5 de março de 2010

Entrevista - Vernoz Muñoz Villalobos

*Texto enviado por Marilda Duarte. Confira (texto e fotos) na página do SESC SP

O relator da Organização das Nações Unidas para o direito à educação analisa os processos educacionais na América Latina e o envolvimento de governos e da sociedade na questão


O seminário Pela Não Discriminação na Educação reuniu diversos especialistas em São Paulo, em agosto de 2009. Entre eles, o costarriquenho Vernor Muñoz Villalobos, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direito à educação, que veio ao Brasil a convite da Campanha Latinoamericana pelo Direito à Educação (Clade) – um movimento articulado pela sociedade civil de países da América Latina. Formado em filologia, direito, direitos humanos, filosofia e educação, Villalobos atua também como diretor do Departamento de Educação em Direitos Humanos na Defensoria da Costa Rica; é professor de direito civil na Universidade Latina da Costa Rica; e conselheiro de Educação em Direitos Humanos para organizações não governamentais e na Escola de Comunicação da Universidade da Costa Rica. Relator especial desde 2004, o entrevistado desta edição da Revista E falou, em conversa exclusiva, sobre a função que exerce para a ONU, sobre o papel e a qualidade das escolas públicas em diferentes países do mundo e sobre violência e discriminação. A seguir trechos.

No que consiste seu trabalho? O que é um relator especial para os direitos da educação?
Meu trabalho está inserido no funcionamento geral da Organização das Nações Unidas, um universo complexo de instituições, de órgãos intergovernamentais, de fundos... E um mecanismo muito conhecido relativo às convenções de direitos humanos é o que se chama de órgãos e tratados – como o do direito da criança à educação. É ele que cuida para que os direitos das crianças se cumpram. Ocorre que as Nações Unidas se deram conta de que esse mecanismo era um pouco fechado. Por isso foi idealizado outro sistema de proteção, o de procedimentos especiais, formado por um grupo de especialistas – independentes, não fazem parte das Nações Unidas – e que são encarregados de informar regularmente sobre o estado de organização dos direitos humanos. E é por essa razão que o Conselho de Direitos Humanos nomeia uma série de relatores especiais para diversos temas. E um deles diz respeito ao direito à educação.

O mandato do relator do direito à educação foi criado em 1998, pela antiga comissão de direitos humanos. A comissão foi substituída pelo Conselho de Direitos Humanos. Então, desde 1998, estamos trabalhando nesse mandato. Sou o segundo relator [desde 2004] e meu trabalho consiste fundamentalmente em informar ao Conselho de Direitos Humanos e à Assembleia Geral o que está acontecendo com a educação no mundo. Para isso, tenho que apresentar relatórios, tanto ao Conselho como à Assembleia Geral, e realizar visitas oficiais aos países. Essas visitas culminam com um relatório sobre o que está acontecendo em cada um desses países. “A história da América Latina é de assimetrias. (...) A distância entre os que têm pouco e os que têm muito é enorme. E esse contexto social e político se traduz também na educação”

Você está no segundo mandato. Qual é a sua avaliação sobre a educação na América Latina durante esse período?
A história da América Latina é de assimetrias. A América Latina não é a região mais pobre do mundo – a África subsaariana é mais pobre –, mas ela é mais desigual. A distância entre os que têm pouco e os que têm muito é enorme. E esse contexto social e político se traduz também na educação. Ou seja, os processos educacionais na América Latina estão caracterizados em virtude de as populações terem sido historicamente discriminadas, por estarem fora da escola. Estamos falando dos pobres, dos indígenas, das pessoas com necessidades especiais, das meninas também... Ou seja, das pessoas que não tiveram oportunidade dentro do contexto social. Então, se há algo que caracteriza a educação na América Latina, é isso.


E você saberia dizer por quê? Historicamente, há alguma explicação?
A evolução da América Latina foi fundamentada no processo de colonização. Pessoas que vieram há 300, 400 anos para colonizar nossos povos desenvolveram uma visão de mundo feudal, baseada na crença de que havia pessoas com superioridade política e econômica em relação a outras. Além disso, os processos de colonização significaram a subjugação do mundo indígena. Por um lado, a eliminação de populações e, por outro, a assimilação desses indígenas ao modelo predominante. Então esse contexto colonial foi aumentando as assimetrias sociais, e o produto é um sistema educacional que reproduz isso.


Você acredita que hoje a educação na América Latina se tornou um bem caro para sociedade? Até os anos de 1960, 1970, as bandeiras de educação eram muito ligadas às questões ideológicas, de esquerda. Você acredita que a sociedade assumiu isso como uma necessidade?
Creio que houve avanços muito importantes. Não podemos comparar as oportunidades educacionais que temos hoje em dia com aquelas de 60, 70 anos atrás. O aparecimento dos instrumentos dos direitos humanos marca definitivamente a trajetória da educação. Antes da existência desses instrumentos, antes da Declaração dos Direitos Humanos, a educação era concebida como um privilégio, que incluía algumas pessoas, não todas, e dependia da boa vontade dos governantes. Neste momento a educação é considerada um direito humano fundamental, considerada também uma obrigação do Estado. Os governos têm a obrigação de oferecer oportunidades de educação, e essas oportunidades se tornam um bem público, um bem social. Claro, há mentalidades que vêm de uma ideologia neoliberal e que consideram que educação é algo que custa muito. E esse tipo de mentalidade é que mantém fora das culturas educativas os pobres, as pessoas que não podem pagar pela educação, as que não têm oportunidades...


Falando da questão neoliberal, como você vê esse avanço do ensino privado na América Latina? Há no Brasil quem questione a necessidade da existência de universidades públicas, achando importante que as universidades sejam todas privadas.
A educação também é uma liberdade. As pessoas têm a liberdade de escolher uma instituição educacional, há a liberdade dos pais e mães escolherem que tipo de educação querem para seus filhos. Mas existe uma obrigação do Estado, independentemente da liberdade das pessoas, de oferecer oportunidades educativas de qualidade para todos. Se a oferta educacional do Estado é boa, não há necessidade da educação privada. Vejamos os casos dos países europeus. Nos países nórdicos [que compõem uma região da Europa setentrional (ao norte) e formada por Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia] a educação privada é pequena. Porque a oferta educacional pública é excelente. A educação privada está reservada para os centros educativos com uma determinada orientação religiosa, centros educativos que têm uma certa projeção que o Estado não oferece, mas não é a regra. Temos países da América Latina, como a Guatemala, onde 80% da educação secundária é privada. São 80%! É verdade que o governo atual está fazendo um trabalho excelente, mas o que quero dizer é que as pessoas que não podem pagar [pela educação] não têm oportunidades educacionais. O sistema neoliberal tende, ou tem tendido, a reduzir a capacidade do Estado para atender os problemas sociais e, portanto, tem transferido essa responsabilidade do Estado para as famílias. E a consequência direta disso é a deterioração dos sistemas educacionais, a inversão educacional e a ausência da perspectiva da educação como um direito humano fundamental.

“Dos adultos e jovens que não têm acesso à escola, mais de 60% são mulheres. Dos 100 milhões de meninos e meninas que não vão à escola, mais de 60% são meninas. Ou seja, há um problema de acesso de meninas, adolescentes e mulheres à educação”

Você aborda muito a questão da discriminação. O que você observa sobre isso?
Meu trabalho é no esquema dos direitos humanos, da educação como um direito humano. E os direitos humanos têm três pilares fundamentais: a não discriminação, a igualdade e a justiça. Há muitos outros, mas esses são os fundamentais. O que tenho tentado mostrar é que existem processos históricos de discriminação e que evitam que grandes massas de população possam ter acesso à escola. Então, vivemos em um mundo em que há aproximadamente 100 milhões de meninos e meninas que não vão à escola. E quando queremos saber quem são esses 100 milhões, facilmente descobriremos que são indígenas, membros de minorias étnicas, gente pobre, mulheres principalmente, pessoas com necessidades especiais... Pessoas que estiveram historicamente discriminadas. Por isso meu mandato tem se focalizado na atenção às pessoas discriminadas, porque são elas que estão fora das oportunidades educacionais.


Em um dos seus informes, você defende que a educação, para quem está preso, sem liberdade, é um instrumento de melhoria, inclusive para quando sair da prisão. Gostaria que você falasse, primeiro, se essa é uma ideia que vem sendo praticada nos países que você observa e, segundo, qual é o conceito que embasa essa proposta.
Há uma grande contradição de base no tema da educação nas prisões. A contradição é que supostamente a prisão serve para reabilitar o delinquente, isso é o que dizem. Mas, na prática, o que sucede é exatamente o contrário. As pessoas não são reabilitadas e, além disso, quando saem da prisão, estão mais violentas, mais frustradas, mais destruídas moralmente, fisicamente. A prisão continua sendo um método de punição, um castigo, um método de segregação, um método de estigmatização. Então, quanto à primeira pergunta, sobre se a oferta de educação na prisão está servindo para algo: de alguma maneira, diz respeito à noção de pretender que as pessoas aprendam a viver em liberdade mediante a prisão. É algo assim como pretender que alguém aprenda a jogar futebol em um elevador. É um absurdo! Temos que pensar então em uma oferta educacional para as pessoas privadas de liberdade que realmente lhes sirva para conduzir a vida uma vez que saiam da prisão, da melhor maneira. E a oferta educacional, com esse fim, tem que atender a necessidades concretas, específicas das pessoas que estão privadas de liberdade. Tem que lhes permitir abrir os olhos para o mundo e para a vida e, especialmente, aprender ofícios, que possam ajudar a dignificar a própria vida. Neste momento, essa oferta, nas prisões, não tem esse fim, não está servindo para nada.


No caso das meninas, qual é o tipo de restrição que você verificou em seu trabalho? Há uma discriminação própria quanto ao estudo das meninas?
Dos adultos e jovens que não têm acesso à escola, mais de 60% são mulheres. Dos 100 milhões de meninos e meninas que não vão à escola, mais de 60% são meninas. Ou seja, há um problema de acesso de meninas, adolescentes e mulheres à educação. Por um lado, temos um grande problema; por outro, sabemos que as meninas, quando estão na escola, recebem um tipo de educação que fere sua dignidade. Elas recebem um tipo de educação que é sexista, cheia de estereótipos, elas devem enfrentar violência dentro das escolas e, como se isso fosse pouco, todo o processo educativo não é pensado para elas. Por exemplo, normalmente quando os professores fazem os estudantes participarem [das atividades em classe], segundo estudos etnográficos, os professores preferem as opiniões dos meninos. Esses mesmos professores disseram que têm mais rendimento trabalhando com os meninos que com as meninas. Nos livros de textos, as imagens das mulheres não somente são distorcidas como as meninas não se sentem identificadas com esses livros. Isso quer dizer que, além da questão do acesso, temos o problema com relação ao tipo de educação que se oferece, que não protege a dignidade das meninas. É um tipo de educação patriarcal e, apesar disso, as meninas costumam obter maior êxito que os meninos. Em todos os níveis. Para piorar, as meninas grávidas e as mães adolescentes são sistematicamente excluídas dos processos educativos – não em todos os países, pois cada vez há maior consciência. No entanto, as mães adolescentes têm que resolver o problema de cuidar de seus filhos, de seus bebês. E normalmente o pai também é adolescente, quando não um adulto que não tem responsabilidade de assumir o filho. Para agravar a situação, a maioria dos sistemas educacionais na América Latina não inclui uma educação para a sexualidade. E isso incrementa violações e abusos, devido à falta de conhecimento sobre temas elementares. São sistemas educacionais que continuam fortalecendo um tipo de masculinidade que rechaça a sensibilidade, a manifestação dos sentimentos e o compromisso que nós, os homens, temos de ter com a construção de uma cultura igualitária. Assim, tudo isso contribui para um efeito negativo especialmente para a mulher.


E a questão da violência nas escolas? É algo que se verifica também em países ricos, como os Estados Unidos, e que está no Brasil, numa cidade como São Paulo. Por que a escola é, muitas vezes, palco da violência?
A escola é um reflexo, um espelho, do que acontece na sociedade. Não se pode pensar em uma escola que não seja violenta em um contexto social que é essencialmente violento. E também não se pode pretender que a escola resolva o problema da violência na sociedade. Ela não pode resolver os problemas que os políticos não querem resolver. Pretende-se que a escola resolva tudo, que resolva o problema do meio ambiente, o problema da saúde, da saúde dental... Então é uma situação complicada. Esses conflitos têm origem social, econômica, cultural, e a educação pode contribuir, aliviar um pouco, mas não pode resolver definitivamente. A melhor maneira de lidar com o problema da violência intraescolar é tentando estabelecer um ambiente democrático, a experiência da liberdade na escola. No entanto, essa é uma tarefa bastante complicada, não se pode resolver facilmente.


Qual o papel da família, na sua opinião, dentro do mundo moderno da educação? Onde a família deve estar? Dentro dessa cadeia, digamos assim?
Todas as pessoas são sujeitos da educação. A família tem que estar incorporada aos processos de educação de seus “Neste momento a educação é considerada um direito humano fundamental, considerada também uma obrigação do Estado. Os governos têm a obrigação de oferecer oportunidades de educação” filhos, mas também são sujeitos próprios nesse processo. Compartilhamos o próprio aprendizado. Os pais não vão à escola, mas isso não quer dizer que não aprendam com a experiência de seus filhos e com suas próprias experiências como pais e mães. O modelo de escola que temos é um modelo que segrega, é um modelo inadequado. Temos que pensar em um novo modelo de escola que esteja cada vez mais aberto às necessidades da família e da sociedade. Não podemos pretender resolver os problemas do mundo com esse sistema educacional que temos. É impossível. Temos que pensar em outro sistema escolar, que responda aos tempos de nossa era, que deixe de lado esse esquema utilitarista, quase mercantil, da escola tradicional. E a família deve repensar-se também, como um espaço de aprendizagem coletiva, com respeito às particularidades de cada pessoa. Temos que deixar de pensar em um pai que simplesmente castiga seu filho, sua filha, porque isso gera mais complicações. Temos que pensar em um pai e em uma mãe que se envolvam de outra maneira no processo educacional de seus filhos. E a escola em nossos dias não colabora com isso.


Você acredita que a escola hoje reflete muito mais um desejo do mercado, ou seja, de formar um profissional, e não formar um ser humano, numa visão humanista?
Sim, isso é correto. Muitas das tendências atuais veem a escola como um recurso para as necessidades dos empregadores, dos patrões. E ainda bem que as escolas formam profissionais! Mas a verdade é que muitos sistemas educacionais, muitos dos sistemas atuais, esperam que as escolas formem simples operários. Não digo que ser operário seja ruim, mas também não oferece oportunidades para que as pessoas possam continuar seu desenvolvimento profissional. Além disso, a finalidade da educação não é atender a necessidade do mercado e dos patrões. Mas sim fazer com que as pessoas possam construir conhecimentos que dignifiquem os seres humanos, que dignifiquem a vida. E creio que há uma grande falha, não acho que temos seguido pela trilha correta.


Você também demonstra uma preocupação com a educação dentro das comunidades historicamente excluídas. No caso do Brasil, nos últimos anos há a preocupação de resgatar a história dos negros dentro da educação. Qual a sua opinião sobre esse fenômeno, que também tem ocorrido em outros países?
O Brasil tem o problema do racismo. Segundo o instituto de estatísticas do Brasil [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE], o analfabetismo na população negra é muito maior que na população branca. A exclusão da população negra nas escolas é muito maior que a da branca; o sucesso escolar da população negra é menor, devido precisamente a toda a estigmatização que existe. Atualmente, o que se vê é que há um processo de reivindicação da população negra, que está lutando a favor de seus direitos, e me parece que isso normalmente deveria levar, no correr dos anos, a melhores condições de igualdade na população brasileira, que é uma população intercultural, em que a contribuição das pessoas de origem africana foi fundamental em praticamente todos os campos, na cultura, no esporte, na ciência, na literatura...


O que você acha das cotas para negros nas universidades?
Isso funciona perfeitamente. Isso é conhecido como uma ação afirmativa. Diante de uma situação de discriminação, o Estado, o governo, tem a obrigação de desenvolver ações afirmativas para que as pessoas que são historicamente discriminadas tenham oportunidades. Isso tem funcionado em muitíssimos países, e começou com as ações afirmativas para as mulheres, por exemplo, no mundo da política, para se garantir que ao menos 50% dos cargos elegíveis sejam para as mulheres. Porque havia todo um sistema que impedia as mulheres de terem acesso a posições de poder. O caso da população afrodescendente é igual. Houve um sistema que a oprimiu historicamente e agora se deve garantir que pelo menos um certo percentual, uma certa quantidade tenha a segurança de que terá uma vaga, uma cota.


Nos países que você visita, onde aconteceram essas ações afirmativas, os resultados foram positivos?
Muito. O caso da Malásia, por exemplo, onde há um componente social, que havia sido excluído historicamente e que, graças a esse tipo de ações afirmativas, conseguiu se recuperar. E agora esse componente social é dominante, por exemplo, é majoritário. Funciona.
Há quem argumente, no Brasil, que esse tipo de ação afirmativa poderia criar um conflito racial. O que você acha disso?
Parece-me que isso não é verdade. Ao contrário. Trata-se de fazer com que pessoas que estiveram numa situação inferior por muitos anos tenham poder. Parece-me que não tem nenhum fundamento essa crítica.

“A finalidade da educação não é atender a necessidade do mercado e dos patrões. Mas sim fazer com que as pessoas possam construir conhecimentos que dignifiquem os seres humanos, que dignifiquem a vida”


Fonte:
Revista SESC SP
n. 153
Janeiro de 2007

Sugerido por:
Marilda Duarte
www.textoseideias.com.br
Celular 11 8259 9733

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