sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Lazer na Rua

*Texto enviado por Marilda Duarte. Confira (texto e fotos) na página do SESC SP. Ilustrações: www.marcosgaruti.com


O aumento da violência, os perigos do trânsito e a falta de espaços adequados nas cidades, principalmente em metrópoles como São Paulo, fazem com que os pais evitem que seus filhos se relacionem com o ambiente urbano. Com isso, o convívio social e as brincadeiras infantis migram das ruas para os locais privados, como os condomínios fechados. Mas quais são os malefícios trazidos por essa falta de contato externo? Quais as formas de driblar os percalços da contemporaneidade para que os filhos possam usufruir esse espaço de convivência e sociabilização? Em artigos exclusivos, o doutor em ciências humanas e professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) José Guilherme Cantor Magnani e a arquiteta e urbanista Claudia Oliveira debatem a questão.

A rua, espaço público como lugar de brincar
por Claudia Oliveira

Por que torn
ar a rua um lugar de brincar? A cidade deve fornecer espaços públicos de lazer, pois todas as crianças têm direito a saúde, ao lazer, a liberdade e à convivência comunitária. Elas necessitam do espaço público próximo a suas casas para poder optar e realizar o lazer no seu tempo disponível, construir sua autonomia e cidadania.

Em São Paulo, há escassez de espaços públicos e carência de locais de brincar. Por vezes, o único espaço público aberto que encontramos próximo às residências é a rua, que foi invadida por automóveis e pela insegurança; as calçadas foram ficando menores e esburacadas; e a criança foi perdendo o seu espaço de brincar. Muitas passam a não conhecer sua rua, os limites de seu bairro, e não podem circular livremente pelo entorno de suas casas.

A rua é um espaço público multifuncional que está indiscriminadamente presente em toda a cidade, é o espaço que se encontra à porta das casas, rico de oportunidades, dinâmico, significando sedução, estímulos e descoberta. Precisamos nos reeducar para poder formar a criança no espaço da cidade, utilizar a rua, melhorar a qualidade de vida e revitalizar o tecido urbano degradado.

Hoje as crianças apresentam mudanças na percepção e exploração dos espaços, pois não os vivenciam. Muitas crianças que não se movimentam e ficam fechadas dentro de suas casas se tornam agressivas e individualistas. A falta de movimento do corpo pode provocar doenças como a obesidade, que, somada à falta de recreação em espaço aberto, pode causar no futuro problemas cardíacos e pulmonares.

É no dia-a-dia, experimentando o espaço no tempo, que a criança vai trabalhando seu corpo e sua mente. A necessidade de movimento é absolutamente fundamental, sua aprendizagem envolve força muscular, equilíbrio, agilidade, resistência, ritmo e sentimentos, como afetividade, medo, espanto. Segundo o doutor Wallon [WALLON, Henri. Les Ages de l'Enfant Vers une Vie d'Homme. Paris: Universitaries, 1973], "a criança em desenvolvimento necessita de movimento, de ação, de gritos, do exercício de todos os seus aparelhos sensoriais e motores. Toda frustração de suas necessidades se traduz em fadiga, irritação e agressividade, entre outras."

No ser humano, o controle dos movimentos é uma das condições essenciais da autonomia e do equilíbrio pessoal. Graus de equilíbrio são necessários para que o desenvolvimento da criança seja bem-sucedido.

Assistindo à televisão ou utilizando o computador, a criança não partilha suas emoções e não explora suas possibilidades; são situações, espaços, tempos diversos da vida real em que trabalha pouco a criatividade, porque tudo já vem pronto.

A criança em desenvolvimento necessita do exercício de todos os seus aparelhos sensoriais e motores e de espaço para brincar e pôr em movimento todos os músculos do corpo numa desordem útil, que a ginástica e o esporte não suprem. Os neurônios precisam de determinados estímulos para desenvolver habilidades como visão, coordenação motora e linguagem. A falta desses estímulos, no momento adequado, pode comprometer irreversivelmente a formação da criança.

Ela necessita explorar o espaço de várias formas para poder, no futuro, possuir diversos registros acumulados para planejar, executar a ação certa e inventar novas ações a ser aplicadas a situações inéditas.

A criança, brincando, no espaço externo junto à natureza, com tempo, liberdade e outras crianças, recebe estímulos constantes e variados, trabalha e enriquece a sua percepção do espaço, cria suas próprias regras e limites, e desenvolve a sua sensibilidade, coordenação motora, imaginação, mente e criatividade, socializando-se, trocando experiências, respeitando, criando vínculos com outras crianças e com adultos de diversas classes sociais, crenças, raças, culturas e etnias, e aprende a ser solidária.

O espaço lúdico é o caminho mais eficaz para a aprendizagem: encanta, motiva e desperta na criança a curiosidade e o desejo de aprender. O contato com a natureza fornece à criança, dada a sua dinâmica, ritmo e riqueza de informações, tais como vento, calor, perfumes, cantos dos pássaros, luminosidade, sombras, coloridos e formas, estímulos constantes à observação, à exploração, ao aprendizado e à criatividade.

Crianças brincando juntas constituem um potencial para trocas, convivência, integrações, compartilhamento, diversidades que se completam. Entre todos os tipos de espaço, é o espaço público, espaço de todos, que proporciona uma fonte de estímulos, riquezas, conhecimentos, aprendizados, inter-relacionamentos, e desempenha um importante papel no processo de formação da criança.

Elas precisam ter condições para elaborar o próprio projeto de vida, trabalhar sua auto-estima estimulando o prazer do aprendizado, sentindo-se valorizadas, e tendo ajuda para poder se afastar das drogas, das más companhias, sentindo-se dignas e podendo passar a exigir os seus direitos e cumprir os seus deveres num verdadeiro exercício de cidadania. Para podermos viver na cidade, num ambiente de uso comum, precisamos aprender a "conviver", ou seja, "viver com os outros e no espaço de todos", diminuindo a violência urbana e a segregação social.

Através do brincar, desenvolve-se o hábito de respeito ao semelhante e a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, possibilitando o desenvolvimento e a reintegração de crianças, através de atividades que possibilitem a auto-estima e aquisição de conhecimentos para sua evolução como cidadãos, na atuação para um mundo mais justo e humano.

O espaço público, entre outros, a rua, é o espaço da sociedade, do uso coletivo, do reencontro do homem com a natureza, da troca de valores das crianças e dos adultos de várias faixas etárias, raças, crenças, etnias, culturas e classes sociais, da participação comunitária, de todos compartilhando um espaço comum e interagindo entre si, em clima alegre, espontâneo e despretensioso.

A rua é um espaço que se abre ao firmamento, dá o sentido de liberdade, de movimento, de ação e de transformação, "o céu em permanente mudança". Como nos diz Santos e Vogel [SANTOS, Carlos Nelson Ferreira; VOGEL, Arno. Quando a Rua Vira Casa. Rio de Janeiro: Finep/Ibam, 1981], a riqueza das experiências possíveis numa rua não pode ser mimetizada por nenhuma instituição pedagógica, inclusive pela forma de apreensão não analítica, através da qual a diversidade social pode ser vista, percebida e compreendida. A rua é, mesmo, um microcosmo real. É o elemento estruturador da cidade, muitos olhos podem garantir sua segurança; eles asseguram que nada passa despercebido. São olhares dos que supervisionam o espaço que pertence a todos em comum, com a convicção de intervir e partilhar uma responsabilidade coletiva do lugar dinâmico, de livre acesso, no qual todos se encontram, universo de múltiplos eventos e relações.

Mayumi S. Lima [LIMA, Mayumi Souza. A Cidade e a Criança. São Paulo: Nobel, 1989] já questionava: os espaços da cidade, como as praças e principalmente as ruas dos bairros da periferia, poderiam ser pensados para o uso prioritário das crianças e das famílias e secundário dos carros, tal como ocorre nos calçadões centrais. A possibilidade da proibição de carros é aventada quando o interesse é comercial. Por que não para atender ao interesse das crianças?

Hoje é tempo de conquistar coletivamente e utilizar a rua, o espaço público que flui pela cidade e lhe dá continuidade, além de proporcionar elementos para que a criança reconheça esse espaço como sendo o seu espaço, e se necessário transformá-la no lugar de brincar.

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CLAUDIA OLIVEIRA É ARQUITETA, URBANISTA E AUTORA DO LIVRO O AMBIENTE URBANO E A FORMAÇÃO DA CRIANÇA (EDITORA ALEPH, 2004)

O pedaço das crianças
por José Guilherme Cantor Magnani

Nos tempos qu
e correm é quase automática a relação entre cidade e perigo; se se trata de uma metrópole como São Paulo, então, essa vinculação é imediata: parecem sinônimos. E justamente o espaço que aparece englobando todo esse perigo é a rua. Esta, no entanto, é o próprio emblema da cidade: se existe um elemento que melhor a representa, é a rua. É nela que ocorrem, preferencialmente, as relações e encontros entre pessoas com experiências, origens e visões diferentes, e é da troca entre elas que resulta, mais rica, a cultura urbana. Sem esse tipo de contato, as pessoas ficariam restritas ao convívio entre os iguais, confinadas ao espaço doméstico. Essas trocas e relações estão sujeitas a regras que definem um domínio particular de convivência: o espaço público.

Essa oposição entre espaço público e espaço doméstico, bastante conhecida, ganhou novas conotações a partir do trabalho do antropólogo Roberto da Matta, que a transpôs para uma fórmula mais concreta: casa versus rua. Cada um desses termos resume um conjunto de características que se contrapõem, mas também esclarecem um ao outro. Assim, "casa", que representa o domínio do privado, é o espaço das relações de sangue, do contato íntimo, da segurança; "rua", ao contrário, é o domínio do público, das oportunidades, dos estranhos, e também do perigo. As crianças conhecem muito bem essa diferença: "Já pra casa, menino!" Ou então: "Que está fazendo até essa hora na rua?"

Entretanto, com base em pesquisas antropológicas que desenvolvi na periferia da cidade de São Paulo, e depois em regiões mais centrais, introduzi um terceiro termo nessa relação, o "pedaço": trata-se de um espaço intermediário entre a casa e a rua. É quando, de um lado, a casa se abre para fora e, de outro, a rua se torna mais acolhedora: do encontro, da interseção entre ambos é que surge o pedaço, vocábulo usual na linguagem comum, mas que pode ser tratado como uma noção mais geral, uma categoria que também designa relações, regras, normas. Assim foi definido, no livro Festa no Pedaço:

"O termo, na realidade, designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. Pessoas de pedaços diferentes, ou alguém em trânsito por um pedaço que não o seu, são muito cautelosas: o conflito, a hostilidade estão sempre latentes, pois todo lugar fora do pedaço é aquela parte desconhecida do mapa e, portanto, do perigo. Para além da soleira da casa, portanto, não surge repentinamente o resto do mundo. Entre uma e outro situa-se um espaço de mediação cujos símbolos, normas e vivências permitem reconhecer as pessoas diferenciando-as, o que termina por atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com a produzida pela interpelação da sociedade mais ampla e suas instituições" (MAGNANI, José Guilherme, Festa no Pedaço. São Paulo: Editora Hucitec, 1998, p. 116-117).

Pelo fato de intermediar os dois domínios, o pedaço apresenta características de ambos, combinando-as, porém, na forma de novas regras: da casa reproduz o ambiente de segurança e, da rua, a novidade, o imprevisto, a possibilidade de contato com pessoas que não estão vinculadas pelos laços de parentesco. Os freqüentadores de um pedaço, ou aqueles que podem circular por ele não são totalmente estranhos. Dessa forma, o pedaço pode ser considerado uma espécie de transformação, de abertura da casa em direção ao espaço público, englobando-o.

É nessa condição que se institui um espaço privilegiado para o exercício da sociabilidade. No caso das crianças, é aí que podem iniciar-se, desde cedo, no exercício da cidadania, pois entram em contato com outro ambiente, com outras pessoas, precisam conhecer novas regras de convivência, entre as quais aprender a compartilhar, ceder, negociar... Pode parecer muita responsabilidade, tarefa de adultos, mas é no ambiente lúdico que essas regras se internalizam.

Na verdade, isso não constitui nenhuma novidade, os educadores sabem muito bem. O importante, entretanto, é assinalar que o pedaço, como uma espécie de modulação da rua, precisa ser construído. Não está dado, não foi previsto pelo planejamento urbano, é antes o resultado de um investimento em termos de presença, uso e criatividade por parte dos usuários. Na verdade, precisa ser conquistado. Em vez do movimento de retração em direção ao espaço fechado, isolado, superprotegido, como resposta à violência, é preciso fazer com que a rua, o símbolo da convivência urbana, volte a ser mais segura, hospitaleira e acolhedora. Para isso, é preciso ocupá-la. A propósito, cabe aqui o relato de uma experiência, descrita e analisada por um grupo de alunos meus (Fábio Peixoto, Jade Percassi, Marina Couto, Sandra Bitar - Infância na Metrópole: o Tempo Livre das Crianças Que Freqüentam o Projeto Piá, 2001) como trabalho de conclusão da disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia, na USP.

Foi uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Instituto Cactus de Educação e Cultura, conveniado com a Faculdade de Educação da USP e Secretaria Municipal de Educação. O que quero ressaltar não é tanto a atividade pedagógica em si, muito interessante, mas a forma como as crianças, à época um grupo de cerca de 20 integrantes, de 2 a 12 anos, se dirigiam ao local do projeto: provenientes de vários cortiços da região, encontravam-se na esquina das Ruas Lopes Chaves com Margarida, na Barra Funda, na Casa de Mário de Andrade. A partir daí, acompanhadas apenas por uma educadora, percorriam, cantando, um itinerário pelas ruas do bairro até o Centro Educacional e Esportivo Raul Tabajara, onde se situa seu pedaço de destino. O importante a assinalar aqui é a constituição de um trajeto (outra das categorias que utilizo nas pesquisas sobre espaço urbano, correlato ao de pedaço) por vias públicas, numa estratégia que as tornava visíveis, despertando atenção, curiosidade. À vista daquele bando ruidoso, transeuntes e pessoas do entorno deixavam, por momentos, suas ocupações habituais e, das portas ou janelas de seus carros, casas, escritórios e oficinas, formavam uma ola de vigilância, no estilo que Jane Jacobs denomina o balé das calçadas, a proteção a partir dos múltiplos olhares (Vida e Morte de Grandes Cidades, Martins Fontes, 2003).

Assim, vemos aqui o pedaço no momento da partida ou encontro, um trajeto, e finalmente o pedaço de destino, na forma de uma estratégia simples e ao mesmo tempo ousada, instituindo uma verdadeira experiência de ocupação de ruas e equipamentos públicos que, ao menos em determinados momentos, foram transformados em espaços protegidos, acolhedores, mas não confinados, repletos de estímulos produzidos pela própria dinâmica urbana.

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JOSÉ GUILHERME CANTOR MAGNANI É DOUTOR EM CIÊNCIAS HUMANAS PELA FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (FFLCH) DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) E PESQUISADOR QUE ATUA NA ÁREA DA ANTROPOLOGIA URBANA, COM ENFOQUE EM MODALIDADES DE LAZER, CULTURA E SOCIABILIDADE NA METRÓPOLE

Fonte:
Revista SESC SP
n. 116

Janeiro de 2007


Sugerido por:

Marilda Duarte
www.textoseideias.com.br
Celular 11 8259 9733

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