segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Debate sobre a participação de criança à frente da bateria de escola de samba

*Matérias enviadas por Tamara Gonçalves apontando argumentos divergentes no debate. Merece bastante atenção! Textos retirados da Folha de S. Paulo.

Mais fontes sobre o tema.
Folha de S. Paulo (17, 16, 15, 14 e 13/2/2010),
O Estado de S. Paulo (17, 16, 15, 14 e 13/2/2010),
Meio&Mensagem,
Propmark,
Tela Viva,
Observatório do Direito à Comunicação

Folha de S. Paulo

TENDÊNCIAS/DEBATES
É correto que Júlia Lira, 7, desfile como rainha da bateria da escola de samba Unidos do Viradouro?

SIM
Compromisso com a dignidade da criança
MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO

ENQUANTO família, sociedade e poder público, temos o dever de assegurar às crianças e aos adolescentes, com total prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, à convivência familiar e comunitária (artigo 227 da Constituição). Portanto, diante de nossas crianças e adolescentes, devemos sempre adotar uma atitude de cuidado compartilhado, que não tolere nenhum tipo de negligência.

Certamente, a vulnerabilidade da infância ajuda a sustentar a polêmica em torno da decisão do juízo da Vara da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro de conceder uma autorização judicial para que uma criança de sete anos possa vir a desfilar como rainha da bateria da escola de samba Unidos do Viradouro no Carnaval carioca deste ano.

Essa polêmica pode ser salutar, pois busca delimitar o alcance do vocábulo "cuidado" enquanto categoria de valor jurídico, que contempla e protege crianças e adolescentes, delimitando seus direitos e deveres.

O mito de erotização que cerca as rainhas de baterias de escolas de samba é um fato. Porém, esse paradigma pode estar mudando no Carnaval deste ano. De um lado temos uma criança de sete anos que será rainha da Viradouro, e, de outro, a cantora Elza Soares, uma veterana com mais de 70 anos (revelados), irá desfilar como madrinha de bateria da Mocidade.

Dessa forma, podemos entender que as musas sensuais, que sempre tiveram prevalência à frente das baterias de escolas de samba, podem estar perdendo terreno para o novo e para a experiência.

Nunca é demais lembrar que somos responsáveis pela sociedade, e a decisão de liberar a criança para fazer o desfile é positiva no sentido de separar a grossa pornografia e a pedofilia de um espetáculo de cunho universal que faz parte da cultura nacional.

Os pais da menina estão dispostos a cumprir os requisitos determinados pela Justiça, dentre os quais o de acompanhar a menor durante o desfile.

Até porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 75, parágrafo único, estabelece que crianças menores de dez anos somente podem permanecer em locais de apresentação ou exibição acompanhadas dos pais ou responsáveis.

A menina, entusiasmada, talvez pelo ambiente carnavalesco que cerca a cidade do Rio de Janeiro nesta época, está motivada com a possibilidade de desfilar na avenida. Seus pais, cientes das dificuldades, cumpriram tudo aquilo que determina a legislação aplicável e socorreram-se do Poder Judiciário. Este houve por bem entender que não haverá violação do princípio do melhor interesse da criança ou da dignidade humana.

Ora, vivemos em um Estado de Direito, e a função do Poder Judiciário é mediar os conflitos sociais, bem como proteger os jurisdicionados com a aplicação da Justiça distributiva baseado no imperativo da lei.

Relevante questão diz respeito aos trajes e horário que a criança irá se apresentar, pois deverão ser preservadas a sua dignidade pessoal e moral e a inocência da pouca idade. O juízo da Vara da Infância estabeleceu condições e limites que os responsáveis pela menor deverão observar, sob as penas da lei.

Há que observar que os ensaios da escola de samba fazem parte do cotidiano e das relações socioafetivas dessa criança, uma vez que seu pai é o presidente da agremiação e a mãe também está envolvida no dia a dia da escola. Portanto, o acesso a esse tipo de espetáculo não se choca com a rotina e o desenvolvimento da menina, mas faz parte de um universo simbólico conhecido da criança.

Apenas o imaginário infantil migrará para o plano real, sem prejuízo à sua formação moral. Na complexidade de um mundo em profunda transformação, a realidade mais uma vez acabará dando a moldura legal para o caso concreto, prevalecendo a antiga lição de que "o direito é coisa essencialmente viva".

MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO, advogado, é conselheiro e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.

Folha de S. Paulo, Opinião - Tendência/Debates, 13/2/2010
Link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1302201008.htm

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TENDÊNCIAS/DEBATES

NÃO
Folia, foliões e os direitos das crianças
CARLOS NICODEMOS

COM O processo de redemocratização do Estado brasileiro, instaurado no início da década de 1980 e consolidado institucionalmente com a Constituição Federal de 1988, incorporou-se na lógica política e jurídica do Brasil a proteção intransigente dos direitos humanos, passando estes a serem considerados indispensáveis para a nossa existência enquanto país-nação.

Nesse cenário, desenvolveu-se um conjunto de políticas de proteção de direitos humanos, entre os quais estão os direitos das crianças e dos adolescentes. Tais direitos possuem como arcabouço jurídico de sustentação a Convenção Internacional dos Direitos Humanos das Crianças, documento da ONU de 1989, a Constituição Federal de 1988, notadamente o artigo 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Este último conjunto normativo é orientado por princípios norteadores, como o de considerar a criança e o adolescente sujeitos em peculiar processo de desenvolvimento. No contexto do Carnaval (produto da história do Brasil), é possível afirmar que crianças e adolescentes no Brasil são dotados do direito ao lazer e à cultura, ou seja, são verdadeiros cidadãos da folia. Por outro lado, essa participação não pode ser pensada e praticada fora da lógica dos fundamentos jurídicos mencionados e, especialmente, apartada da condição da criança de estar em processo de desenvolvimento humano e social.

O caso da pequena Júlia Lira e sua participação no Carnaval do Rio de Janeiro como rainha da bateria de uma escola de samba é a expressão de que a folia se coloca sobre os interesses da jovem foliã. Efetivamente, não somos contra a participação de crianças no Carnaval.

Somos a favor de que essa participação se dê em condições de favorecer o crescimento saudável das crianças e dos adolescentes. Ocupar o posto de rainha da bateria de uma escola de samba, que tradicionalmente é comercializado para mulheres adultas que reúnam critérios de alta erotização, certamente não atende o reclame das leis que mencionamos, que vedam toda forma de ameaça ou violação de direitos, exigindo, nessas hipóteses, a proteção das crianças por parte da família, da sociedade e do Estado, tudo na forma do ECA.

O argumento da juíza de Direito que concedeu a autorização para que tal fato se consumasse na avenida do Carnaval, qual seja, que não necessariamente ocorre a erotização, somado à afirmação do pai da pequena Júlia Lira, presidente da escola de samba, que recusara oferta de R$ 180 mil de uma musa para desempenhar o papel de rainha da bateria para assegurar a participação da pequena Júlia, indica uma flexibilização de direitos humanos que não é própria para a condição do Brasil, como uma República intransigente protetora de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

O processo social de erotização da infância caminha a passos largos na sociedade moderna, dentro e fora do Carnaval. Está no cotidiano, em casa, nas novelas, na escola etc. Trata-se de uma variável social vinculada ao problema das violências sexuais de crianças e adolescentes que deve ser enfrentado em todos os níveis, inclusive nas formas subliminares, como no caso que ora debatemos.

O esforço de alguns segmentos da sociedade civil organizada aliada das autoridades públicas no enfrentamento das violências sexuais de crianças e adolescentes, especialmente contra a prática da pedofilia, sucumbe como ineficaz quando toleramos de forma consciente e inconsciente as manifestações de erotização precoce de crianças e adolescentes. Crianças e adolescentes são dotados de sexualidades, sendo esta um direito que deve ser contextualizado no processo gradativo de desenvolvimento de que aqui já tratamos. Dessa maneira, fica claro que o caso da pequena Júlia Lira, amada e protegida pelos seus pais, é apenas um exemplo da cultura da tolerância com o intolerável, na qual colocamos a pergunta: afinal, trata-se aqui de atendermos o interesse da criança ou do Carnaval?

Assim, na avenida do samba, percebe-se que a folia sobrepõe-se à foliã, e o descompasso com o respeito à condição peculiar de uma criança de sete anos certamente retirará pontos do Estado brasileiro nos quesitos democracia e direitos humanos.

CARLOS NICODEMOS, advogado, membro da OAB-RJ e coordenador-executivo da organização de direitos humanos Projeto Legal, é presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança do Estado do Rio de Janeiro.

Folha de S. Paulo, Opinião - Tendência/Debates, 13/2/2010
Link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1302201009.htm


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RAINHA MIRIM QUASE DESISTE DE DESFILAR
Em sua polêmica estreia como rainha da bateria mirim da Viradouro -foi preciso autorização da Justiça-, a garota Júlia Lira, 7, filha do presidente da escola, Marco Lira, mostrou incrível potencial para diva: primeiro, no camarote da escola, fechou a cara por causa do short que a mãe, Mônica, se esqueceu de levar; depois, já com o short por baixo da fantasia de "tesouro", a garota chorou e disse que não queria mais sair. Foi preciso que a assessora da escola, Joyce, a pegasse no colo para acalmá-la. Júlia evoluiu na avenida como criança (não como adulta mirim): errou alguns passos e mandou beijos dengosos.

Folha de S. Paulo, Cotidiano, 16/2/2010
Link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1602201012.htm

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